9.6.06

NOTA: Aos poucos e fantasmáticos leitores deste blog, tenho o orgulho de comunicar que este que vos escreve acaba de ganhar um prêmio que muito lhe honra.
O concurso se baseou na produção de uma reflexão crítica acerca da justiça contemporânea, com base na leitura de um livro do escritor e desembargador João Uchoa Cavalcanti Neto, de nome O Equívoco – contos bandidos. O fato é que participei do concurso, com um texto que intitulei “Justiça, Simulacro e o Exílio da Argumentação”. Dez textos – de 427 – foram premiados, e o meu ficou em nono, o que muito me gratificou. O texto, como exigia a regra do concurso, é um ensaio de cinco folhas. Além dos prêmios que estavam sendo esperados, surgiu uma novidade no dia da cerimônia de premiação (08 de junho de 2006): a editora preparou cinco exemplares de um livro que contem todos os textos premiados para cada participante. Eu, por enquanto, não vou publicá-lo aqui. Aos interessados em adquirir o livro, entrem em contato comigo, pelo meu e-mail, marcelohenriquerj@hotmail.com, que eu envio o pedido aos responsáveis pela publicação.
Fico aguardando.
O livro de Uchôa trata, através de contos curtos, da questão da justiça. O texto é do ano de 1975 – por coincidência o ano de meu nascimento – e o livro é, portanto, uma reedição. O que chama a atenção, entretanto, é a atualidade das linhas de Uchoa, que despem o judiciário de sua proteção narcísica, mostrando, com isso, a impressionante marca de nossa época: “uô, uô, uô, uô nada mudou...”.
O prêmio dado aos textos que ficaram entre o 4º e o 10º lugares foi um fim-de-semana no hotel Vilagge Le Canton, que fica na estrada Teresópolis-Friburgo. O primeiro colocado ganhou um cheque de 5000 reais, o segundo, um cheque de 3000 reais, e o terceiro foi contemplado com um cheque de 1000 reais.
Uma iniciativa de valorização do texto como veículo crítico e reflexivo, que merece os mais efusivos aplausos, e que deve ser constantemente repetida, em prol da manutenção do debate como figura viva em nossa sociedade.

Marcelo Henrique Marques de Souza
09 de junho de 2006.

15.5.06

alteritas: Sinopse Liter�ria - As Palavras e as Coisas (Michel Foucault)

sinopse - livro

Sinopse Literária - As Palavras e as Coisas (Michel Foucault)

O livro "As palavras e as coisas", do pensador francês Michel Foucault, traça um quadro detalhado da mudança de ordenamento que ocorre no discurso ocidental no período que se estende do Renascimento até o final do século XVIII/início do século XIX (período que o pensador pontua como o tempo de efetivação da ideologia chamada de modernista).
Foucault atravessa a História, na tentativa de cercar os elementos de significância que ilustram, a partir de seu entrecruzamento, os jogos de sentido que auxiliaram na reprodução da 'epistême' moderna. A construção dos sistemas de articulação científica, sua maneira de ser e todo o enredo discursivo que contribuiu para a disseminação das representações das representações são objeto do trabalho arqueológico do pensador, que surpreende os mais ingênuos com a infância semântica do homem, objeto recente na história do saber.
A diferenciação que se cria entre as chamadas "ciências humanas" e aquelas que recebem o rótulo purificado de "ciências exatas" é também analisada nesta obra, que se destaca por enxergar no aparecimento e no desenrolar do humanismo um elemento gerador de crise para o próprio discurso científico como um todo, e mesmo para toda a epistême moderna em todo o seu enquadramento.
O texto deixa uma importante conclusão, em termos do processo histórico: para o homem, como sentido e como objeto de estudo, o período que se estende para trás do século XVII é apenas e tão somente uma pré-história, reticências prévias.

Foucault e o fim da filosofia

Xeque-mate. Essa é uma ótima expressão para a contribuição do pensador francês Michel Foucault ao debate filosófico. A sua teoria do discurso – ou melhor, sua análise teórica alicerçada na noção de discurso – é um divisor histórico, que produz, de uma forma contundente, um corte anestésico, até hoje inescapável para a filosofia enquanto campo de saber.
Na verdade, esse corte acaba deixando seqüelas em todas as diferentes esferas do conhecimento. Isso porque o aparato teórico de Foucault, e o próprio desdobramento de seu detalhado texto, concorrem para determinar um âmbito de análise que não permite a circunscrição de um saber em nenhuma especificidade, sem que isso denote todo o jogo de poder que acaba dissimulado – ou ignorado – no desenrolar da sistemática.
Ora, o que a especificidade faz é sancionar o significante na figura do conceito. Nesse sentido, a filosofia se mostra tão ideológica quanto qualquer campo de saber que se queira situar numa ordem de valor menos sofisticada.
Estabelecer para o próprio saber um lugar específico e limítrofe de movimentação é o crime da filosofia – como é o crime de qualquer organização positivista do conhecimento –, crime este que aparece desnudado no traçado teórico da análise foucaultiana (aliás, Foucault acaba enquadrando a própria originalidade de seu texto: depois de Foucault, não podemos chamar mais ninguém de foucaultiano. Foucaultiano, só o próprio, e mesmo assim...). A arqueologia do saber traz para o primeiro plano aquilo que fica sempre sublimado pela lógica totalizante do discurso.
O que aparece em todo o minucioso texto de Foucault é o fato de que a filosofia se move refém do próprio objeto que delimitou. Isso fica bem clarificado quando se analisa a forma como Foucault avalia a aparição da questão crítica em Kant. O pensador francês propõe que a crítica kantiana acaba servindo, por uma via transversa, como o principal aparato de legitimação dos discursos de especificidade. Isso porque a crítica cria uma situação moral para o discurso, que se perpetua alicerçado no apêndice crítico como saber-de-si do conceito. Em outras palavras, o conceito, em sua especificidade, traz a figura de saber para o jogo do álibi da auto-reflexividade.
Todo esse xadrez discursivo só faz uma vítima: o próprio processo histórico ele mesmo. É a História que se apaga nos fixismos auto-referendados. É, em termos hegelianos, a consciência-de-si do conceito, que tira o próprio da linha de tiro. A consciência-de-si é o estágio do espírito no qual a própria consciência se descobre. Ao se descobrir, contudo, ela cria uma ilusão de saber que é a sua própria tautologia. Ela acaba perpetuando sua alienação por uma via de simulação, visto que aparenta ter descoberto as leis gerais que regem seu funcionamento. O afogamento do aleatório como possibilidade – mais: como fato – é o xeque-mate de qualquer reflexão.
A incerteza do saber, a maleabilidade histórica dos enunciados e sua tendência inescapável para o jogo, é isso o que o discurso filosófico oculta por sob as vestes de um véu errante, que protege de forma tautológica o seu próprio estatuto. Nisso, o que faz é inibir a emancipação do objeto-saber de suas amarras institucionais.
A descontinuidade que ocorre na forma da filosofia, em sua maneira de ser diante de tudo aquilo que representa e em tudo aquilo com o qual estabelece articulação acaba não resistindo mais ao processo analítico. Graças a Foucault. A representação da representação, disfarçada de apresentação, cria um processo de procuração que interdita o saber, vinculando-o ao jogo masoquista da instituição. E é exatamente isso que a (grande) parte messiânica do “debate” contemporâneo ainda não percebeu. A bravata do gênero se mantém. Até por que, segundo Foucault, é exatamente esse elemento – o gênero – que caracteriza, no geral, o corte epistemológico que se realiza na época clássica. Epistemologia essa que é tão adjetiva quanto redundante, visto que é o próprio saber-de-si como dado imagético que se estabelece no corte.
Em termos do que resiste sob a inércia histórica do carimbo filosófico, é um rei em xeque que a pretensa filosofia contemporânea mantém em voga. O tabuleiro está parado, e não há movimento a fazer. Em um dos lados, a filosofia segura o rei, atônita, rodopiando-o por entre os dedos, sem ter mais para onde se mover, senão em volta de si mesma. Seu oponente, este já se levantou, já saiu do recinto; mas deixou, em sua obra – que descansa o gozo da vitória, o gozo da autoria, no assento frontal –, a lembrança fatal de um movimento teórico de amplitude ímpar, que decreta o xeque-mate do jogo, nos provocando a um único desdobramento possível: continuar a partida sem o rei.

Marcelo Henrique Marques de Souza
Abril de 2006

11.5.06

A(S)SOMBRA DA LOUCURA


Uma pequena reflexão sobre um trecho de Michel Foucault. Diz assim: “a história da loucura seria a história do Outro – daquilo que, para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser portanto excluído (para conjurar-lhe o perigo interior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a alteridade)”[1].
A partir do louco como o Outro, como estranheza, e como encerramento em um simbolismo que reduz e alteridade, vejamos como isso se configura no discurso atual.
Uma das implicações simbólicas mais explícitas do contemporâneo é a resposta extremamente individualista que os indivíduos têm dado ao convívio com a semântica empresarial, que irriga constantemente o discurso com sua lógica de concorrência, trustes, holdings e monopólios.
E, sabemos, é essa a ordem do discurso. O hábito que faz o monge. As condições de reprodução de um tipo de enunciação são inteiramente compartilhadas no desenrolar do tempo, no desdobrar-se encadeado – e sutilmente atento aos desmandos – do movimento infinito das falas e dos sintomas.
Ora, o que significa o outro para o individualista? Quem aparece como espelho para o contemporâneo das fusões de mercado?
É curioso constatar que a redução de alteridade que de fato “sofria” o louco anterior (não estamos falando de um sofrer melancólico, porque se tratava de um tipo singular de louco, significado pelos ditames estruturais da medicina) em nada lhe afetava, na medida em que sua própria condição lhe excluía das afetações normalizadas – e normatizadas – que acompanhavam os que viviam sob as reconfortantes vestes da comunidade.
Isso criava uma espécie de papel fundamental para o louco pré-moderno: ele era o que não se queria ser, e o que não se queria ter por perto. O não-ser-louco repousava, pois, como sentido latente de certa harmonia que re-conectava o ritual de convivência no cotidiano dos comuns-normais, que projetavam o Outro-louco nas sombras de seus espelhos de alteridade.
Mas o que seria o comum para o que convive com o individualismo como regra? Para o individualista, há como refletir-se a alteridade? As sombras da loucura assombram o indivíduo contemporâneo em seu próprio reflexo social, na medida em que só lhe vale, de fato, o si-mesmo de suas projeções totalizantes.
Quem é o louco, então, para o eu atual? O louco não é o Outro, mas os outros. Mais que isso: são todos os outros. O que, portanto, normaliza a marginalização completa da alteridade.
A diferença acaba ficando nítida: na dialética da normatização pré-moderna, não havia vencido, porque o grande crime, de fato, é incluir o louco. Na atual, a norma é a do ‘cada um por si’. Quando o que se consegue ver é um conjunto de loucos incluídos, quando as grades já não mais existem e as sombras não mais refletem, mas assombram, configura-se, então, o desfalecimento da alteridade para o indivíduo. É a antítese que não mais nega, mas amedronta. É a exclusividade que exclui.


[1] Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Prefácio: p. XXII.