15.5.06

Foucault e o fim da filosofia

Xeque-mate. Essa é uma ótima expressão para a contribuição do pensador francês Michel Foucault ao debate filosófico. A sua teoria do discurso – ou melhor, sua análise teórica alicerçada na noção de discurso – é um divisor histórico, que produz, de uma forma contundente, um corte anestésico, até hoje inescapável para a filosofia enquanto campo de saber.
Na verdade, esse corte acaba deixando seqüelas em todas as diferentes esferas do conhecimento. Isso porque o aparato teórico de Foucault, e o próprio desdobramento de seu detalhado texto, concorrem para determinar um âmbito de análise que não permite a circunscrição de um saber em nenhuma especificidade, sem que isso denote todo o jogo de poder que acaba dissimulado – ou ignorado – no desenrolar da sistemática.
Ora, o que a especificidade faz é sancionar o significante na figura do conceito. Nesse sentido, a filosofia se mostra tão ideológica quanto qualquer campo de saber que se queira situar numa ordem de valor menos sofisticada.
Estabelecer para o próprio saber um lugar específico e limítrofe de movimentação é o crime da filosofia – como é o crime de qualquer organização positivista do conhecimento –, crime este que aparece desnudado no traçado teórico da análise foucaultiana (aliás, Foucault acaba enquadrando a própria originalidade de seu texto: depois de Foucault, não podemos chamar mais ninguém de foucaultiano. Foucaultiano, só o próprio, e mesmo assim...). A arqueologia do saber traz para o primeiro plano aquilo que fica sempre sublimado pela lógica totalizante do discurso.
O que aparece em todo o minucioso texto de Foucault é o fato de que a filosofia se move refém do próprio objeto que delimitou. Isso fica bem clarificado quando se analisa a forma como Foucault avalia a aparição da questão crítica em Kant. O pensador francês propõe que a crítica kantiana acaba servindo, por uma via transversa, como o principal aparato de legitimação dos discursos de especificidade. Isso porque a crítica cria uma situação moral para o discurso, que se perpetua alicerçado no apêndice crítico como saber-de-si do conceito. Em outras palavras, o conceito, em sua especificidade, traz a figura de saber para o jogo do álibi da auto-reflexividade.
Todo esse xadrez discursivo só faz uma vítima: o próprio processo histórico ele mesmo. É a História que se apaga nos fixismos auto-referendados. É, em termos hegelianos, a consciência-de-si do conceito, que tira o próprio da linha de tiro. A consciência-de-si é o estágio do espírito no qual a própria consciência se descobre. Ao se descobrir, contudo, ela cria uma ilusão de saber que é a sua própria tautologia. Ela acaba perpetuando sua alienação por uma via de simulação, visto que aparenta ter descoberto as leis gerais que regem seu funcionamento. O afogamento do aleatório como possibilidade – mais: como fato – é o xeque-mate de qualquer reflexão.
A incerteza do saber, a maleabilidade histórica dos enunciados e sua tendência inescapável para o jogo, é isso o que o discurso filosófico oculta por sob as vestes de um véu errante, que protege de forma tautológica o seu próprio estatuto. Nisso, o que faz é inibir a emancipação do objeto-saber de suas amarras institucionais.
A descontinuidade que ocorre na forma da filosofia, em sua maneira de ser diante de tudo aquilo que representa e em tudo aquilo com o qual estabelece articulação acaba não resistindo mais ao processo analítico. Graças a Foucault. A representação da representação, disfarçada de apresentação, cria um processo de procuração que interdita o saber, vinculando-o ao jogo masoquista da instituição. E é exatamente isso que a (grande) parte messiânica do “debate” contemporâneo ainda não percebeu. A bravata do gênero se mantém. Até por que, segundo Foucault, é exatamente esse elemento – o gênero – que caracteriza, no geral, o corte epistemológico que se realiza na época clássica. Epistemologia essa que é tão adjetiva quanto redundante, visto que é o próprio saber-de-si como dado imagético que se estabelece no corte.
Em termos do que resiste sob a inércia histórica do carimbo filosófico, é um rei em xeque que a pretensa filosofia contemporânea mantém em voga. O tabuleiro está parado, e não há movimento a fazer. Em um dos lados, a filosofia segura o rei, atônita, rodopiando-o por entre os dedos, sem ter mais para onde se mover, senão em volta de si mesma. Seu oponente, este já se levantou, já saiu do recinto; mas deixou, em sua obra – que descansa o gozo da vitória, o gozo da autoria, no assento frontal –, a lembrança fatal de um movimento teórico de amplitude ímpar, que decreta o xeque-mate do jogo, nos provocando a um único desdobramento possível: continuar a partida sem o rei.

Marcelo Henrique Marques de Souza
Abril de 2006

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